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Leitaria Garrett
terça-feira, fevereiro 01, 2005
 

Volto a escrever para, uma vez mais preso no meu egoísmo, regressar aos cheiros de Abril, à tua casa, à tua cidade, a esse teu bairro que vive só de noite. Peço ajuda à perfeita combinação de notas musicais, a essa explosão visual que timidamente reconheço. Sou assim transportado para perto de ti, para uma dessas noites de Abril em que nos quisemos perder por entre as ruas apertadas e vigiadas por sombras conhecidas; uma dessas noites em que parámos em vários cafés para fazer tempo até que a noite fechasse um pouco os olhos à nossa presença, nos esquecesse e nos deixasse entrar por ela adentro, clandestinamente, calmamente, claramente. Agora dou-te a mão porque o teu olhar mo pede. Agrada-me a certeza da nossa longitude, o teu olhar superior e a realidade física nos teus gestos que te conferem mortalidade e matéria palpável. Como crianças, corremos de mãos dadas, fugindo de nós próprios, abraçando cada velha porta, calcando as pedras do chão para que a escuridão saiba que andamos fugidos, mas que queremos ser encontrados. Trocamos sorrisos em câmara lenta e deixamos que o movimento dos cabelos se demore um pouco mais do que o estipulado pelas leis da física. O cheiro cada vez mais forte a mar diz-nos que estamos perto do paraíso. Dizes-me que há um sítio que me queres mostrar. Um sítio onde certamente já outrora te deixaste tocar. Não me importa. Nada disso me importa. Agrada-me o passado. Agrada-me, sobretudo, que mo não reveles, pois não quero saber mais nada de ti. Fico-me com este momento de Abril. Esta noite transformada em tantas outras.

Quando nos despedimos, depois de atirarmos ao mar aquela parte de nós que odiamos por ser correcta, prometemos voltar a ver-nos. Nada dissemos, bem sei, Nada fizemos por dizer o que quer que fosse. Eu sabia que teria sempre aquela noite de Abril, a tua cidade e as paredes das casas que escondem a tua gente. Teria e terei sempre, como agora, a faixa número nove do cd gravado. Como uma prenda que nunca me deste.

E é este o material com que são feitos os sonhos. Adiciona-lhe o fumo de um cigarro solitário e espera alguns minutos até que tudo assente. Podes então finalmente voltar a abrir os olhos.


[Que bonito parece tudo isso que me contas! Pff! Pobre alma imberbe és! Tu que vives de sonhos e realidades impossíveis. Como tu tantos outros. Como tu a humanidade que acredita em refúgios como a arte ou a religião. Não! Não te censuro! Também eu sou jovem e sinto o mundo pela frente. Apenas eu não me deixo enganar. Porque o meu trabalho é nunca fechar os olhos! Porque vivo para te lembrar que podes sonhar (ou lá isso que fazes!), mas que amanhã, quando acordares, vais lamentar esse sentimento pós-coital, vais odiar-te a ti mesmo, vais ter vergonha de te olhar no espelho. Por isso digo que escrevas, que graves estas palavras de alguma maneira e que, sobretudo, não tenhas medo de as reler, ainda que nunca mais as voltes a sentir como agora… Dorme. Sonha, Mas lembra-te que daqui a pouco te volto a acordar.]


 
No Chiado, de tardinha, às vezes via-os passar sorridentes...de mão em mão...Dizia quem via:"São rapazes, bons portugueses!".Dona Ana passava também sempre à mesma hora,com os seus longos vestidos de tecido importado do Brasil...Carlos, o engraixador residente, com esse há-vontade que tem quem trabalha na rua,rodava o corpo enquanto Dona Ana passava e,do seu pequeno banco de madeira velha,gritava em suspiros, para que todos ouvissem,o mesmo de sempre:"Ai!, Madame!...Que até me causa indigestão!"

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