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Leitaria Garrett
quinta-feira, maio 27, 2004
  Naquela noite estrelada deixei o quarto de Wendy com o coração destroçado. Teria que, agora e num futuro próximo, mentalizar-me de que nunca mais voltaríamos a voar juntos para a Terra do Nunca; que os nossos futuros presentes não eram compatíveis, que uma distância cósmica nos separava e que, por mais que o desejasse, ela nunca iria fazer parte de mim, do meu eu que desenfreadamente me procurava. Naquela noite ainda sobrevoei Londres uma última vez. Decidi que nunca mais o faria. Que, depois daquela traição, não voltaria a vir procurá-la.
Vou esperar por ti, Wendy, lá longe, no meu coração. Creio que ainda te lembras como lá chegar... a segunda estrela à direita. Porque a idade não importa. Nunca importou. Na Terra do Nunca somos apenas o que somos, sem idades, sem preconceitos, sem máscaras. Ainda te lembras de como era? Vem... Espero por ti, naquele nosso lugar de sempre, onde nos contavas histórias de piratas... Agora tenho que ir... estou preso ao Peter e ele já quer partir. Porque foste tu própria que nos uniste com uma agulha e uma linha preta,... para que se não notasse... (R)
 
terça-feira, maio 25, 2004
  No fundo, no fundo, o que aconteceu foi que Wendy acabou por me trair também... E quando lhe pedi que não acendesse a luz naquela noite de Primavera, foi porque senti que também iria sofrer como minutos antes Peter tinha sofrido. Optei por não a ver, por saber impossivel fazer o tempo recuar... e também porque a impossibilidade faz de mim um mártir feliz... (R)  
terça-feira, maio 18, 2004
  Acredito que todos deveríamos chorar pelo menos uma vez por dia. Eu, por exemplo, já carrego comigo demasiada água há demasiado tempo. (R)  
quinta-feira, maio 13, 2004
  Dói-me a impossibilidade do possível. E mais não digo! Porque também o dizer-me me dói. (R)  
quarta-feira, maio 12, 2004
  Imaginei-me metamorfoseado num insecto kafkiano. Imaginei-me encerrado sem querer numa viatura de janelas fechadas. Senti a angústia de querer romper o vidro e voltar a voar em liberdade. E, no entanto, não consegui mais do que mutilar-me e cansar-me de tanto bater as pequenas e frágeis asas. Fui levado na direcção de outrem sem conseguir controlar o meu próprio rumo. Como é horrível esta prisão! Quando finalmente consegui sair, já o Verão não era mais Verão e já o exterior era outro… (R) 
  "Até que um dia lhe falei, oh, não – que dissemos nós? Havia palavras avulsas entre os dois, mas estávamos em silêncio. Tomei-te a mão devagar, saímos para a cidade, naquela ronda sem fim que tantas vezes havíamos de repetir. Vagueámos pelas ruas desertas, olhámos as estrelas ao alto.
- É tão duro estar só – disse eu.
E não me lembro de termos dito mais nada.


- Que tens tu a dizer-me? – pergunta-me.
Mas não é fácil dizê-lo. Porque as verdades profundas, o apelo do sangue, só se explicam na linguagem da loucura. Ser eu em ti, (…), que alguém nos existisse, não apenas na memória, mas na força total de sermos – tudo isto é verdade e não tem sentido nenhum. Tudo isto é verdade, porque a solidão é tão estúpida… Alucina-me o absurdo como um labirinto: como ser eu nos outros? Ser irredutível e múltiplo? Mas só assim a solidão deixaria de existir. Que me importa transmitir aos outros que dois e dois são quatro ou mesmo o que se passa no fundo de mim? O que eu queria era ser eles quando estão pensando que dois e dois são quatro. O que eu queria é que eles sentissem o que eu sinto e não o que eles sentem. O que eu queria é que eles fossem eu e eu eles, porque só assim é que a “comunicação” tem sentido. Decerto, tudo isto é absurdo – estou farto de o saber. Mas o mais absurdo é o mais humano…
(…)
Eu amava-a, mas porque a amava – pois que é o amor? – tentava aceder ao silêncio de si, ao irredutível de si. À totalidade do seu ser. Pelos dias, pelas noites, eu perguntava-te quem eras, interrogava-me sobre toda a tua vida, queria ser-te desde a origem. E, no entanto, que havia mais do que o instante em que falávamos? Do que os instantes em que já nada digo, nem tu? Porque eu ouço-a é neste calor amigo da minha mão no seu braço, dos nossos olhos vazios pela noite.
(…)
- Fica – disse eu cor ardor. – Estou eu agora. Fica.


NT: no meu romance (“romance” aqui utilizado na dualidade do seu sentido), não há uma Aida. Feliz ou infelizmente, troquei-a por uma sombra. E é apenas ela que se é neste contexto."

in Estrela Polar (1962), Vergílio Ferreira


Voltei a encontrar a minha sombra, numa destas noites, no parque da cidade. Já tinha voltado a correr em mim o sangue frio e começava, de novo, a respirar com alguma normalidade. No entanto, mal a vi, voltei a apaixonar-me. Ela tinha em si outra forma e outros contornos onde já me não reconhecia na plenitude. Identificava-me apenas com ela, não me revia naquele escuro. Falámos da impossibilidade de se falar e escrevemos um argumento surreal, que ambos ambicionávamos transformar em monólogo. Pelo menos da minha parte queria que assim fosse. Senti o sangue fervilhar de novo e pedi ajuda. Pedi a mim mesmo serenidade e algum pragmatismo. Mas pedi que nada disso me fosse, que nada disso me sentisse. Porque, no fundo, no fundo, não era isso que queria. Queria tê-la para mim. Queria que fosse só minha naquele e nos próximos momentos… e lutava… lutava contra nós mesmos, contra o mundo que nos criou e que nos negou à partida a possibilidade de concretizarmos o nosso amor. Sim, é de amor que falo. É desse sentimento contraditório e forte que não pensei voltar a sentir. Decidi que não queria que o nosso amor fosse uma meta, mas sim um objectivo. Mas também isso não dependia inteiramente de mim. Pudera eu ter parado o tempo e dizer-lhe, fora de gestos ambíguos e toques leves pouco significantes, que o meu desejo era que nos cosêssemos e não mais nos separássemos. Voltei a perder a noção de espaço e tempo e tentei (juro que tentei!) ser-me, revelar-me. Mas também nisso fui um fraco. Talvez se o tivesse feito ela não tivesse partido; não ao menos sem me deixar nesta incerteza. Agora, hoje, neste café, não me pertenço, não me encontro nestas poucas dimensões em que vivemos. Quero deixar-me de gritos contidos e explodir. Quero viver e ter a vida a que tenho direito. Quero, sobretudo, encontrar-me…
Voltei a ler Freud e a procurar, no mundo dos sonhos, uma saída para o meu mundo de vigília. E nem o mestre me conseguiu ajudar… Regresso e fujo de mim como uma curva em w contínuo. Não estou bem em lado nenhum porque em lado nenhum me encontro. Não como e pouco bebo. Sinto-me desfalecer e não tenho nenhum apoio. Porque não partilho o que sou, não me dou a conhecer. Esqueçam tudo o que julgam que sabem de mim. Rasguem as fotos onde apareço. Queimem o que escrevi. Tudo isso é parcialmente falso. E o parcial, só por si, não interessa nada. O que conta é isto. Este segundo que passa, neste momento. Sou um mentiroso, tenho lados escondidos que já apodrecem de nunca ter visto a luz do sol. Vivo de sombras e arrasto-me por ruelas estreitas e vazias onde ninguém me pode ver na companhia delas. A sombra artificial que me persegue e que tento esconder. Mas pela qual me apaixonei como nunca antes. Sou cruel para quem não devo e já só consigo pensar em mim mesmo. As conjugações verbais deixaram de fazer sentido nas outras pessoas. E, por isso, criei uma pessoa só para ela, que vem logo a seguir ao “eu”, e reduzi as conjugações a 3 pessoas, duas na primeira pessoa do singular e outra na primeira do plural: “eu amo” / “sombra amo” / “nós amamos”. (No caso específico do verbo “amar” – dei-me agora conta – só há sentido se a forma verbal for reflexiva. “Eu amo-me / Sombra amo-me / nós amamo-nos”. Assim é que é!).
Não consigo deixar de pensar nela. De como me é sem se dar conta. De como somo iguais. E vivo da possibilidade de um dia podermos ficar juntos. Já não tenho 13 anos! Já não deveria sofrer como sofri outrora por M. Passados 10 anos, volto a sentir a alucinante angústia. Como quando dormia com um elástico de cabelo de M. debaixo da almofada e encenava, no meu quarto, deitado na cama, que ela estava a meu lado, apenas a um leve toque de distância. O problema é que, na altura, tudo isso me confortava. Hoje, porém, só me traz dor. Quero ter a sombra sempre comigo, cada segundo da minha existência actual. Quero fechar os olhos e imaginar (ou, porque não?, ter a certeza!) que também ela pensa em mim, ou, pelo menos, vai pensar, vai saber que estou presente também na vida dela.
Já alguém registou a patente do casamento com sombras?
Volto a parar para pensar. Deixar de sentir como sempre fiz ao longo da minha vida. Confesso, estou perdido e o meu rumo não me é totalmente certo. Preciso da bússola de Lilith, que, embora pequena e com setas incertas, me será, certamente, útil. De novo grito e apago o cigarro. Há muitas fotografias para tirar. Há um estúdio a construir e um laboratório a nascer, onde me quero fechar, rodeado apenas do mundo que eu quero construir… E se os focos fracos de luz vermelha permitirem a entrada de sombras, melhor um pouco!
(R)
 
  Nos meus sonhos demos as mãos sem preconceitos. Na minha vida de vigília nem por isso… Acordei sobressaltado a meio de uma meia noite e, uma vez mais, não encontrei nem caneta nem papel na mesinha de cabeceira do lado direito da minha cama, para quem olha como quem entra. A sugestão já me tinha sido feita dias antes e eu tinha-me prometido a mim mesmo fazê-lo. Para que tudo isto não me fosse agora fugaz e não ecoasse em mim com cada vez menos força.
Lembro-me, todavia, de como sorrias e me aceitavas. De como os nossos dedos das mãos se entrelaçavam e depois se deixavam escorregar, percorrendo esse eterno caminho até ao infinito das pontas de energia dos nossos corpos. Creio que passeámos assim durante algumas horas, abraçados, sem olhar nunca para trás; porque ambos sabíamos que ali, no meu sonho, estávamos seguros. Porque dentro do meu sonho só entra quem eu quero e eu é que controlo quase tudo.
Pergunto-me se também tu sonhaste comigo nessa ou noutras noites para vir…
Nos sonhos tudo me é permitido. Inclusive o ser-me.
Nos sonhos vivo como quero e quero, de facto, o que vivo.
Sonhar contigo já me aconteceu. Mas apenas sonhar… Porque me pareces inalcançável desse posto que ocupas aí em cima. Pode ser que te encontre por aí mais uma ou outra vez, na vida de vigília. Pode ser que nos consigamos tocar sem nos darmos conta e que o meu sonho passe a ser parcialmente real. Pode ser que te toque o cabelo, como já aconteceu artificialmente. Pode ser que dessa vez me possa demorar em ti mais tempo. Pode ser que te abrace em euforia e que o álcool me ajude a conquistar-te. Mas também nessa altura eu vou estar consciente de que ainda não estou a dormir e que, portanto, nada entre nós será possível.
Corro virado ao contrário… para fugir de ti…; dessas coisas que o mundo chama de paixões.
Tenho uma vida inteira para correr. Para fugir de nós…

NB: escrevi este texto antes do que vou escrever amanhã, que também está aqui publicado com a data de hoje. Mais uma tentativa de confundir o coitado do blog… que, pelos vistos, ainda não conseguiu recuperar do facto de crescer como os humanos, de baixo para cima…
(R)
 
  Wir sind... wieder... und wieder (III)

O cigarro estala neste preciso momento em que escrevo. Faz-me puxar o fumo com ainda mais força, nessa quase necessidade de morte lenta e dolorosa que todos mais ou menos desejamos. Mas não é por isso que te escrevo. Escrevo-te para te contar mais um sonho que tive numa noite destas. Dois pontos.
Voltei a acordar quando ainda o dia não era dia e apenas gritava um ou outro raio crepuscular, que teimavam a toda a força entrar pelos pequenos buracos do estore verde da casa 4. Tinha, de novo, marcado encontro com a sombra e, uma vez mais, nos sentimos como nossos. Digo que foi um sonho porque agora, à luz do sol, nada disso me parece real. Essa aparição que sempre sonhei e que nunca consegui agarrar no pensamento nesse espaço de tempo onde realmente se vive. Acho que de noite os sonhos são mais reais, mais possíveis. Sentes isso também? Acreditas que o escuro nos protege do medo da realidade? Que somos mais nós quando não nos vemos espelhados nos milhares de raios de luz solar que em nós se reflectem? Eu começo a acreditar.
Acreditas num sonho tão real que depois te pareça ser só um sonho? Acreditas na possibilidade de um sonho poder ser vivido à luz do dia solar? Acreditas, ao menos, em sonhos?
De qualquer das maneiras, o facto é que voltei a sonhar que me encontrei com a minha sombra. Voltei a ter essa maravilhosa sensação de me ver ao espelho com outra roupa e sem cheirar a mim. Vai-me lembrando que tenho que indagar o que está escrito no livro azul de Freud acerca das sombras. (Já agora não te esqueças também das portas, das janelas e das pontes no Dicionário amarelo de Simbologia.) Vai-me acompanhando os pensamentos para um dia falarmos mais sobre tudo isto. Talvez então já eu tenha decifrado todo este dilema e me tenha finalmente descoberto à luz do dia, no simples acto de me ser. Quero saber quem sou fora da luz artificial, longe dos espelhos e das sombras. Quero descobrir-me por dentro do que está cá dentro; quero viver nessa aparição todos os restantes segundos da minha vida. Ou, pelo menos, quero saber que se trata apenas de uma aparição e que todos as temos de vez em quando.
Também se pode esquecer tudo isto e continuar a respirar apenas a pouca luz da noite. Como se, em vez de um rolo de 400 ISO, escolhêssemos fotografar-nos de noite apenas a 100 ISO… Sem tripé… para que tudo fique ainda mais desfocado!


III

Quero acabar com tudo isto. Quero que a sombra me desapareça e comece a andar sozinha por ela própria, que ganhe consistência e me diga: “Decidi partir!”. Quero ser alguém, realmente como se é, sem espelhos ou sombras. Quero cortar o que ainda me une a esse lado narcisista, que tanto me fascina. E, no entanto, quero deixar de me ver como sou eu na verdade. Quero voltar à falsidade do quotidiano e voltar a ser-me apenas na metade. Sem A, sem ilusões ou sonhos de paisagens surreais. Quero o impossível. Podia o vento vir e levar tudo isso; arrancar-me o que me perturba e, de vez em quando, voltar apenas com brisas suaves de isso que são as peças dos meus desejos e sonhos. Quero parar o tempo. Quero deixar de pensar e apenas ser. Quero, sobretudo, deixar de me contradizer… aqui e aí.
AAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!!
Quero que estes gritos contidos tenham sentido e façam eco fora deste papel ou desse monitor.
Podiam ser todas as fotografias a cores. Podiam queimar todos os registos a preto e branco, onde as sombras são, na verdade, sombras e fazem sentido. Quero deixar de escrever merda e conseguir dormir novamente.
(R)
 
  O grande dilema do blog é que a sua narratividade lhe é contrária. Creio que sofre por ser lido de baixo para cima...  
  Resolvi ligar um dia à minha sombra. Achei que já era altura de termos uma conversa mais séria, de nos confrontarmos com os nossos próprios odores e sabermos realmente, ao cabo de alguns anos, quem somos e porque o somos. Liguei-lhe por alturas de Primavera, em Maio creio. “Prefiro que seja à noite”, disse do outro lado da linha. Ok! Que seja. Também a mim me dói a luz do sol quando me vejo ao espelho.
Encontrei-a à minha espera encostada a um velho candeeiro de rua. Naquele cruzamento da rua C com a avenida R, onde os bancos públicos têm uma cor verde solitário. Ali estávamos. Eu como eu e ela como ela, transformada em mais três, pelos raios de luz amarela. Só ali tinha o poder de ser mais do que uma e eu gostava disso. Ambos sempre gostámos de nos transformar em outros, sentir que, de facto, esse era o nosso maior e melhor truque. Trocámos olhares e falámos de trivialidades. De como eram as nossas vidas quando não estávamos juntos. Também ela não gosta de futebol. Pedi-lhe desculpa por nunca lhe ter ligado quando nos cruzávamos na rua e ela sorriu.
Quando se esgotou o tema de conversa, tomei a iniciativa e pedi-lhe que me levasse a outro lugar. Queria vê-la de outras formas: reflectida no rio ou num espelho. Deixei que me guiasse pelas largas ruas da cidade e que o rio nos visse e nos acenasse, como que concordando com o facto de finalmente termos decidido reunir-nos.
Reparei então que era impossível separar-me daquilo que era eu, daquele meu espelho narcisista que eu tão bem conhecia. “That’s you / That’s me / We are… / We are… in love”.
Naquela noite quebrei todas as regras e tabus e deixe-me, unicamente, ser. Parei de fingir ser quem não era e senti que, realmente, era mais eu do que pensava. Perdi o medo e o preconceito e acendi um cigarro. Embora aparentemente não fumasse, acompanhou-me sem que eu visse o fumo que dela saía. Era já perto da meia-noite quando, por fim, nos tocámos, como se fossemos dois seres distintos, autónomos, com sentimentos e odores distintos. Contei-lhe a história do rapaz de verde que também tinha uma sombra que era um alguém autónomo. Rimo-nos juntos com isso. Rimo-nos mais ainda por saber que éramos nós que nos éramos. E que ali, naquele instante, mais ninguém poderia saber qual de nós era qual. Fomos unos, por instantes longamente surreais. Sem saber bem porquê não nos colámos inteiramente… Apenas nos saboreámos com leves toques de mãos. E assim foi, durante quase todo o tempo em que a noite foi noite e a certeza do dia certa. (R)
 
  no meu filme há adereços verdes espalhados por todo o cenário. No meu filme há uma música tocada apenas por violinos e violoncelos, que lideram uma voz clara feminina.
Há actores que se beijam em contraluz debaixo de uma ponte no Central Park. Há um jovem que corre à chuva de noite. Há uma solista que canta no porto de honra da inauguração de uma galeria de arte. Há beijos escondidos nos grandes planos dos lábios iluminados da actriz. Há cabelos longos e esticados que tocam e escorregam ao longo de mãos suadas. Há gritos a giz e a pastel verde-escuro. Há carros que passam e buzinam à chuva. Há trovões que desejam sobrepor-se à melodia que passa. Há grandes e longos planos de corpos nus. Há coxas iluminadas e o travelling de um ombro. Há um momento de apoteose que ainda não sei bem qual é. Há sentimentos indizíveis e horas de desespero intermináveis. Há a palavra amor e solidão. Há a incerteza de noções. Há sussurros do outro lado da cama. Há a esperança de um final feliz. Há um argumento escrito num bloco pautado de linhas horizontais com furos para argolas. Há fragmentos de ideias na agenda de um telemóvel. Há arte e bailado flamenco. Há uma guitarra que deixa que a toquem. Há leques e longos vestidos. Há cigarros que fazem desenhos no ar. Há fotografias a cores e a preto-e-branco. Há portas e há pontes. Há um plano em sequência de um comboio que parte. Há espelhos. Há horas em que não me encontro no mapa. Há mapas que não me encontram. Há encontros que não se encontram. E há encontros que se encontram. Há “ses” e muitos verbos conjugados no conjuntivo. Há conjuntos de flautas que tocam ao mesmo tempo. Há séries de televisão americana. Há o plano de uma actriz que fuma contra o vidro. Há leituras à chuva. Há morte. Há lágrimas e 10 minutos de silêncio na tela escura. Há corpos perfeitos que se conjugam na perfeição. Há anjos que voam sem que se dê por eles. Há lamechices e o desejo de um fim. Há um recomeço e uma longa estrada que termina lá no fundo, quando o asfalto toca no céu. Há árvores que sobrevivem à terra amarela e seca. Há companhia. Há uma conversa de café que dura uma eternidade feliz. Há ritmo numa pista de dança anónima. Há a vontade de liberdade e fuga. Há-me… Há-te… Há-nos… Há gaivotas e o cheiro a maresia pela madrugada. Há um farol que chama e guia. Há ondas que rebentam e milhares de milhares de milhares de grãos de areia numa praia que não termina. Há mitos e mitologias. Há medo e mágoa. Há água em todas as suas formas. Há formas e feitios. Há familiares e amigos. Há palavras em latim e música latina. Há dias em que não sei porque (não) escrevo… Há expressões como “es gibt”, “hay” e “there is”. E ainda não decidi se há ou não um final.
 
  à velocidade da luz… Acordei com a Xayide nos meus braços. Contemplava-a agora com a pouca luz que me chegava dos candeeiros da estrada da rua Q. Tinha os longos cabelos pretos espalhados pela almofada branca. Alguns escorregavam-lhe pela cara e tornavam-na, assim, ainda mais misteriosa. Lembrei-me, nesse momento, que percorríamos juntos uma das muitas ladeiras estreitas da cidade quando me confessou que não suportava ser vista pela manhã, ao acordar. Acho que me lembro perfeitamente dessa tarde. Éramos ainda desconhecidos e, no entanto, Xayide transparecia já tudo o que era e que viria a ser. As velhas casas da parte velha da cidade fugiam ao longo das ruelas estreitas e nós deixávamo-nos ir… assim… em cumplicidade. Creio que foram esses os nossos primeiros verdadeiros momentos, os instantes decisivos em que nos demos a conhecer e nos deixámos abrigar um pelo outro.
Aproveitei, por isso, essa noite para a admirar em silêncio. Sem que me julgasse ou se sentisse julgada.
O relógio digital marcava 04:07 e a luz vermelha dos números alastrava-se, ténue, por toda a divisão. Tinha pouco mais do que uma hora para aproveitar. Voltei a pensar que ter o dom de controlar o tempo seria a maior das dádivas. Poder parar, rebobinar e avançar quando e como me apetecesse. Lembro-me de quando era pequeno (quando ainda morávamos na casa velha da rua B) costumava jogar com T ao jogo do “e se pudesses desejar?”. Ele, porque era mais velho, acabava sempre por me ganhar e desejar algo como “desejava ter mais desejos”. E a mim nunca me ocorreu desejar “o tempo”… Não deve haver desejo mais forte do que este, o de controlar essa dimensão cósmica. Ouvi da boca de A algumas vezes palavras acerca da noção de tempo. Por essa altura ainda não o entendia muito bem, confesso. Limitava-me a dar-lhe a mão e a fechar os olhos. Adorava a sensação de ser guiado, de não saber por onde ia e simplesmente confiar. Agarrava-lhe num ou dois dedos (enormes) e sabia que, por mais que nos cruzássemos com uma infinidade de pessoas, eu nunca esbarraria com nenhuma… Ainda hoje o faço, sozinho, enquanto atravesso a ponte sobre o rio M.
Xayide: naquele momento desejei-te apenas mais um minuto. E desejei não perder mais tempo com estes pensamentos infantis que tenho sempre…
Levantei-me sem a tocar e acendi um cigarro à janela. Lá fora, a cidade, ou o que restava dela, espreguiçava-se e eu pedi-lhe que se demorasse um pouco mais. À minha volta, naquele pequeno quarto de tons claros, tudo, ou quase tudo, a descrevia na perfeição: as roupas exuberantes espalhadas pelo chão e minuciosamente dobradas na cadeira ao canto; os quadros a tinta-da-china que ela mesma pintara um dia ao meu lado; os dossiers organizados e dispostos por ordem alfabética e ordem cromática crescente; a lista de afazeres para os dias seguintes; odores vários em garrafas de perfume para garantir que, também por fora, cheirava bem.
Sorri e soltei uma nuvem de fumo na sua direcção, talvez na esperança que se cruzasse com um dos seus sonhos, que pairavam algures por ali. Xayide sempre foi o outro lado do meu sorriso, a certeza de uma gargalhada cúmplice. Sempre foi incerta com os outros, mas nunca comigo. Sempre foi versátil lá fora, mas única para mim. Uma líder para todos e o mais frágil dos seres, aos meus olhos. Também a ela eu devia o que me tornei. Também ela sabia quase tanto acerca de mim como eu mesmo.
Ocorreu-me o medo de a ter apenas por representarmos um para o outro o lado mais alegre dos nossos quotidianos, que tentávamos omitir a todo o custo. Que ela apenas me quereria ali para a lembrar que também se pode ser como se é, com defeitos conscientes que decidimos não mostrar quando escolhemos que roupa vestir antes de sair de casa pela manhã… Mas afinal, também eu era assim. Ambos éramos mais sinceros entre paredes. Ou entre as luzes eufóricas de uma discoteca, que cegam e criam um espaço só nosso, como se todo o mundo em movimento à nossa volta mais não fosse do que um colorido papel de parede, que voa ao som do vento. Aí está! O nosso perfeito álibi! Nicht Wahr?
Peguei na Nikon 500, regulei a velocidade (porque aqui posso!) e fechei o diafragma um pouco mais, para que entrasse apenas a luz que dela saía, e deixei que o dedo indicador da mão direita por fim a pintasse à minha maneira. Decidi que nunca lhe mostraria aquela fotografia. Preferi que nunca soubesse como a vejo, do lado de cá…  
No Chiado, de tardinha, às vezes via-os passar sorridentes...de mão em mão...Dizia quem via:"São rapazes, bons portugueses!".Dona Ana passava também sempre à mesma hora,com os seus longos vestidos de tecido importado do Brasil...Carlos, o engraixador residente, com esse há-vontade que tem quem trabalha na rua,rodava o corpo enquanto Dona Ana passava e,do seu pequeno banco de madeira velha,gritava em suspiros, para que todos ouvissem,o mesmo de sempre:"Ai!, Madame!...Que até me causa indigestão!"

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