<$BlogRSDURL$>
Leitaria Garrett
quinta-feira, março 18, 2004
  Conheci a Lilith numa dessas tardes chuvosas de Março, em que tudo te parece incerto e dás por ti a questionar estes e outros mundos. Tinha parado de chover nesse mesmo instante em que avistei o cruzamento da avenida L com a rua X. Fechei o guarda-chuva, e, por entre as gotas de água acumuladas nas lentes dos meus óculos, procurei confirmar a luz verde do semáforo para passageiros. Na mão levava um saco de plástico com apenas uma alça e nas costas uma enorme mochila que me incomodava cada vez mais. Atravessei a correr a rua Y, tentando lutar contra a corrente de pessoas que pareciam querer arrastar-me em sentido contrário.
Entrei na lavandaria. Estava quase vazia. Parecia que o dia começava, finalmente a recompor-se. Aquele calor “abafante” e aquele cheiro a roupa lavada e produtos de limpeza agradava-me. Sempre me agradou. Lembro-me daquelas tardes de Verão em que M lavava o chão de azulejos azuis da cozinha da casa na rua B e eu, porque odiava aquele quarto dos fundos escuro que sempre me limitava tardes de sol e brincadeiras, escapava e, no silêncio de Agosto, como uma sombra, me ia esgueirando pelas paredes do corredor até ao meu destino: a soleira da porta da cozinha. A e T dormiam. Dormiam quase sempre durante aquelas tardes. Nessa altura ocorriam-me pensamentos estranhos…, como sonhos. Lembro-me de pensar que A tinha asas escondidas e que T se alimentava daquele cheiro agri-doce que me agradava nas bombas de gasolina. Da porta ficava a vê-la. M era o silêncio e a calma. Tinha um avental em tons de bege com dois bonecos desenhados. Era um encanto contempla-la. Continua a ser. Maravilhava-me cada gesto, cada passo. Fazia com que todo aquele ritual de limpeza se tornasse no mais apetecível dos jogos. Acho que vem daí o meu fascínio por aspiradores.
Lilith passou-me despercebida nos primeiros 10 minutos. Estava sentada num canto da lavadaria, perto da janela, em frente ao primeiro conjunto de máquinas de lavar. Lia, como de resto faz sempre que espera por mim. Tinha o cabelo mal apanhado e, por isso, uma madeixa encaracolada teimava em movimentar-se num sentido incómodo, escorregando ao longo da sua face esquerda. Lilith não se importava mais com isso. Já estava habituada, disse-me uma vez sem palavras. Tinha um casaco de ganga longo, dobrado nas pontas. E uma camisola de lã vermelho-escuro. Estava só, na melhor das companhias.
Continuei sem vê-la, abri a mochila e preparei-me para começar a tirar a roupa suja, separada em vários sacos de supermercado. Carreguei nos botões necessários e fechei a porta redonda da máquina branca. Tive ainda tempo para reparar que alguém havia escrito “BadbOY”, na parte superior daquela máquina número 4. O som da água a correr pelos tubos em direcção à minha roupa tranquilizou-me e incentivou-me, uma vez mais, a sentar.
Abri o livro de Lídia e reli o parágrafo que, na noite antes, decidira ser o mote para os meus sonhos. Acabei por não sonhar… pelo menos que me lembre… Lídia escreve: “Falaram, falaram, revoltados, e só depois, bastante depois, saíram em grupo para apanhar a energia da noite. Sim, andámos a guardar a energia da noite, a receber a luz da escuridão das ruas, a recolher o halo amarelo das lâmpadas penduradas nas hastes. Debaixo delas, a sombra de cada um multiplicava-se por quatro e por várias, como se cada corpo fosse um núcleo duma encruzilhada de sombras”. Fechei o livro. Abri-o e voltei a fechar.
Lilith olhou-me por segundos. E eu retribui o olhar, como se esperasse um sinal. Perguntei-lhe as horas e se tinha um cigarro. Dei uma olhada no livro dela, que entretanto ela fechara, e reparei que lia sobre a pesca do bacalhau. Perguntei-lhe qual a velocidade do tempo e de que cor é o silêncio. Falámos. D’ “O Físico Prodigioso” de Jorge de Sena e do efeito de uma sala escura em cada um de nós. Falou mais ela que eu. Mas eu gostava de a ouvir. Contou-me histórias que eu desconhecia, por me estarem tão perto. Demorou ainda um momento até eu sentir que ela estava à vontade. A certa altura calou-se. Perguntou-me porquê e eu não soube bem o que responder. Voltou a perguntar de outra forma exactamente o mesmo. Como quem tenta falar com um estrangeiro e que, ao receber aquele olhar distante e perdido, volta a fazer a mesma pergunta em inglês. A Lilith provoca-me quase sempre este sentimento. Ao pé dela sou, muitas vezes, um viajante sem conhecimento do idioma. Mas também isso me agrada. Enquanto tentava dizer algo, para que a minha conquista não fosse em vão, pensava que nunca antes tinha sentido tanta dificuldade em dizer fosse o que fosse. Ela não se mostrava cativada pelas minhas palavras e o nervosismo começou a invadir-me. Não tinha memória recente de um tal sentimento. Sempre pensei que o meu maior dom consistia em fazer os que me rodeiam render-se com apenas uma frase minha. Com Lilith tudo era, porém, diferente. Ela mantinha no olhar aquele misto de interesse e incerteza. Parecia que queria falar, mas que não tinha tempo. Parecia-me distante.
Foi já alguns minutos depois que ela, que entretanto tirava peles secas do lábio inferior, se movimentou e me voltou a perguntar porquê. Desta vez, respondi-lhe unicamente “porque sim” e ela sorriu. Acenou com a cabeça como que aprovando e voltou a falar em forma de charada. À medida que ia falando, dei por mim a contemplá-la e a imitá-la. Z disse-me uma vez que o “imitar” é a forma mais indirecta de lisonjeio, mas também a mais forte.
A partir daí, ficámos amigos, creio.
Lilith levantou-se e despediu-se com um beijo. Apenas um.
Via- a partir à chuva escura do final de tarde e prometi a mim mesmo voltar a vê-la.



 
No Chiado, de tardinha, às vezes via-os passar sorridentes...de mão em mão...Dizia quem via:"São rapazes, bons portugueses!".Dona Ana passava também sempre à mesma hora,com os seus longos vestidos de tecido importado do Brasil...Carlos, o engraixador residente, com esse há-vontade que tem quem trabalha na rua,rodava o corpo enquanto Dona Ana passava e,do seu pequeno banco de madeira velha,gritava em suspiros, para que todos ouvissem,o mesmo de sempre:"Ai!, Madame!...Que até me causa indigestão!"

ARCHIVES
03/01/2004 - 04/01/2004 / 05/01/2004 - 06/01/2004 / 06/01/2004 - 07/01/2004 / 07/01/2004 - 08/01/2004 / 08/01/2004 - 09/01/2004 / 10/01/2004 - 11/01/2004 / 11/01/2004 - 12/01/2004 / 12/01/2004 - 01/01/2005 / 01/01/2005 - 02/01/2005 / 02/01/2005 - 03/01/2005 / 04/01/2005 - 05/01/2005 / 05/01/2005 - 06/01/2005 / 06/01/2005 - 07/01/2005 / 07/01/2005 - 08/01/2005 / 08/01/2005 - 09/01/2005 / 09/01/2005 - 10/01/2005 / 10/01/2005 - 11/01/2005 / 11/01/2005 - 12/01/2005 / 12/01/2005 - 01/01/2006 / 01/01/2006 - 02/01/2006 / 03/01/2006 - 04/01/2006 / 09/01/2006 - 10/01/2006 / 10/01/2006 - 11/01/2006 / 11/01/2006 - 12/01/2006 / 12/01/2006 - 01/01/2007 / 01/01/2007 - 02/01/2007 / 02/01/2007 - 03/01/2007 / 03/01/2007 - 04/01/2007 / 06/01/2007 - 07/01/2007 / 09/01/2007 - 10/01/2007 / 01/01/2008 - 02/01/2008 / 05/01/2009 - 06/01/2009 /


Powered by Blogger