"…Sufoco na carruagem, há sacos e cabazes, há uma massa de sono que escorre pelos corpos como um óleo, há um cheiro gordo que amolece tudo, me empasta as mãos e a boca. Quem sois vós? Onde se perde, se apaga, o fulgor único de serdes? Carne gorda, pesada, e eu só, vigiando ainda, iluminando ainda. Venho ao corredor, desço o vidro de uma janela. Um ar lavado escorre-me pela face, cerra-me os olhos numa profunda inspiração. Numa curva, um instante, olho o comboio açodado, que avança pela noite como uma urgência clandestina…"
"E eis que a pergunta obsidiante da velha solidão volta de novo e me afoga de pesadelo. Que haja terra e astros e ventos… Eu só, aqui à minha face. Fraternidade perdida, voz obscura e infatigável para ninguém… Pois para quê? Para quê esta voz tão forte de ser? Para que outra voz da comunidade me reinvente a harmonia com o mais, me responda realmente, me seja um eco, participe de mim e seja eu para lá da morte e me justifique e me recupere, me seja vida depois de eu a não ser, me invente imortal na minha absoluta e inexorável finitude?"
in Estrela Polar (1962), Vergílio Ferreira
Decidi listar as coisas de que gosto em Lisboa. Para que, mais tarde, quem sabe, me lembre delas como as piores lembranças.
Lisboa afinal não cheira a mar… nem a coisa que se lhe pareça. Lisboa cheira a gente e a pó de estrada. Esquematizo:
- gosto da luz que reflectem os altos prédios e as velhas casas amarelas;
- gosto do chão da paragem do metro da Avenida (linha azul) porque brilha quando passo… como se alguém tivesse decidido alegrar aquele túnel, colando brilhantes de forma minuciosa no chão;
- gosto das paragens “Senhor Roubado” (no prolongamento da linha amarela até Odivelas) e “Voz do Operário” (já ali, em Alfama, quando se sobe no eléctrico 28);
- gosto de sentir que gosto de me sentir anónimo;
- gosto de afinal gostar de Lisboa;
- gosto de me sentar do lado direito dos autocarros da Vimeca e ver passar o aqueduto das águas livres pela manhã;
- gosto da magia do Bairro Alto quando já não é de dia. E gostaria de conhecer todas aquelas velhas casas por dentro. Talvez aí encontrasse a felicidade que procuro…
- gosto das possibilidades que a cidade me dá, ainda que as não aproveite;
- gosto do soar do metro quando se aproxima;
- gosto do eco que faz o ranger das escadas rolantes na estação de metro do Saldanha;
- gosto de ainda me sentir baralhado nas paragens da linha amarela;
- gosto do Parque Eduardo VII nas manhãs de Primavera;
- gosto do vento que se passeia por entre os edifícios altos das Amoreiras;
- gosto de deixar Lisboa, sabendo que tenho que voltar;
- gosto do Tejo quando aspira a mar;
- gosto ainda mais das escadas da Cinemateca quando sei que Lilith me espera lá em cima, no bar;
- gosto do elevador do nº 48 da Artilharia 1;
- gosto de uma rua estreita que começa na Baixa-Chiado e desagua no Tejo;
- gosto de me poder ser em Lisboa, onde ninguém me conhece como me mostro;
- gosto do Café di Roma do Saldanha e daquele bar em forma de eléctrico perto de Belém. Gosto, sobretudo, de saber que também aí me fui...
E se o nosso reencontro começasse com sirenes monotonamente silenciosas? Da armação redonda em cima poderiam cair cd’s do peso de penas e folhas pintadas de Outono. Também isso eu teria preparado para ti, S. Parece que já estou a ver como tudo sairia no final, no teu e no meu monitor de tv: o estridente e monótono som das sirenes silenciosas que, progressivamente, deixariam de se ouvir. Escolhi Radiohead como OST: não há alarmes e não há surpresas. Depois focava-te a cara aos poucos, num fade óptico muito lento. Acrescentava-lhe uma câmara lenta para que o teu andar sereno se duplicasse e te tornasses, finalmente, um ser superior palpável aos meus olhos. Depois eu: em rodopio feliz e eufórico, sem cessar, como se tivesse, por fim, conseguido parar o tempo… Do outro lado do ecrã saberiam que eu tinha atingido o estado supremo disso a que chamam de felicidade; tinha conseguido afinal destruir a barreira da estabilidade e do equilíbrio e… era feliz. Tu vinhas, S., e eu esperava-te em pulos que duravam a eternidade de uma câmara muito lenta. Os meus cabelos iam-se perdendo nas paredes do enquadramento e também os meus braços pareciam andar separados do resto do corpo… as sirenes continuavam. Tu vinhas. Há ainda essa hipótese: a de que venhas.
Sem alarmes e sem surpresas. (R)
Radiohead - no surprises / OK Computer