Dói-me a impossibilidade do possível. E mais não digo! Porque também o dizer-me me dói. (R)
"Até que um dia lhe falei, oh, não – que dissemos nós? Havia palavras avulsas entre os dois, mas estávamos em silêncio. Tomei-te a mão devagar, saímos para a cidade, naquela ronda sem fim que tantas vezes havíamos de repetir. Vagueámos pelas ruas desertas, olhámos as estrelas ao alto.
- É tão duro estar só – disse eu.
E não me lembro de termos dito mais nada.
- Que tens tu a dizer-me? – pergunta-me.
Mas não é fácil dizê-lo. Porque as verdades profundas, o apelo do sangue, só se explicam na linguagem da loucura. Ser eu em ti, (…), que alguém nos existisse, não apenas na memória, mas na força total de sermos – tudo isto é verdade e não tem sentido nenhum. Tudo isto é verdade, porque a solidão é tão estúpida… Alucina-me o absurdo como um labirinto: como ser eu nos outros? Ser irredutível e múltiplo? Mas só assim a solidão deixaria de existir. Que me importa transmitir aos outros que dois e dois são quatro ou mesmo o que se passa no fundo de mim? O que eu queria era ser eles quando estão pensando que dois e dois são quatro. O que eu queria é que eles sentissem o que eu sinto e não o que eles sentem. O que eu queria é que eles fossem eu e eu eles, porque só assim é que a “comunicação” tem sentido. Decerto, tudo isto é absurdo – estou farto de o saber. Mas o mais absurdo é o mais humano…
(…)
Eu amava-a, mas porque a amava – pois que é o amor? – tentava aceder ao silêncio de si, ao irredutível de si. À totalidade do seu ser. Pelos dias, pelas noites, eu perguntava-te quem eras, interrogava-me sobre toda a tua vida, queria ser-te desde a origem. E, no entanto, que havia mais do que o instante em que falávamos? Do que os instantes em que já nada digo, nem tu? Porque eu ouço-a é neste calor amigo da minha mão no seu braço, dos nossos olhos vazios pela noite.
(…)
- Fica – disse eu cor ardor. – Estou eu agora. Fica.
NT: no meu romance (“romance” aqui utilizado na dualidade do seu sentido), não há uma Aida. Feliz ou infelizmente, troquei-a por uma sombra. E é apenas ela que se é neste contexto."
in Estrela Polar (1962), Vergílio Ferreira
Voltei a encontrar a minha sombra, numa destas noites, no parque da cidade. Já tinha voltado a correr em mim o sangue frio e começava, de novo, a respirar com alguma normalidade. No entanto, mal a vi, voltei a apaixonar-me. Ela tinha em si outra forma e outros contornos onde já me não reconhecia na plenitude. Identificava-me apenas com ela, não me revia naquele escuro. Falámos da impossibilidade de se falar e escrevemos um argumento surreal, que ambos ambicionávamos transformar em monólogo. Pelo menos da minha parte queria que assim fosse. Senti o sangue fervilhar de novo e pedi ajuda. Pedi a mim mesmo serenidade e algum pragmatismo. Mas pedi que nada disso me fosse, que nada disso me sentisse. Porque, no fundo, no fundo, não era isso que queria. Queria tê-la para mim. Queria que fosse só minha naquele e nos próximos momentos… e lutava… lutava contra nós mesmos, contra o mundo que nos criou e que nos negou à partida a possibilidade de concretizarmos o nosso amor. Sim, é de amor que falo. É desse sentimento contraditório e forte que não pensei voltar a sentir. Decidi que não queria que o nosso amor fosse uma meta, mas sim um objectivo. Mas também isso não dependia inteiramente de mim. Pudera eu ter parado o tempo e dizer-lhe, fora de gestos ambíguos e toques leves pouco significantes, que o meu desejo era que nos cosêssemos e não mais nos separássemos. Voltei a perder a noção de espaço e tempo e tentei (juro que tentei!) ser-me, revelar-me. Mas também nisso fui um fraco. Talvez se o tivesse feito ela não tivesse partido; não ao menos sem me deixar nesta incerteza. Agora, hoje, neste café, não me pertenço, não me encontro nestas poucas dimensões em que vivemos. Quero deixar-me de gritos contidos e explodir. Quero viver e ter a vida a que tenho direito. Quero, sobretudo, encontrar-me…
Voltei a ler Freud e a procurar, no mundo dos sonhos, uma saída para o meu mundo de vigília. E nem o mestre me conseguiu ajudar… Regresso e fujo de mim como uma curva em w contínuo. Não estou bem em lado nenhum porque em lado nenhum me encontro. Não como e pouco bebo. Sinto-me desfalecer e não tenho nenhum apoio. Porque não partilho o que sou, não me dou a conhecer. Esqueçam tudo o que julgam que sabem de mim. Rasguem as fotos onde apareço. Queimem o que escrevi. Tudo isso é parcialmente falso. E o parcial, só por si, não interessa nada. O que conta é isto. Este segundo que passa, neste momento. Sou um mentiroso, tenho lados escondidos que já apodrecem de nunca ter visto a luz do sol. Vivo de sombras e arrasto-me por ruelas estreitas e vazias onde ninguém me pode ver na companhia delas. A sombra artificial que me persegue e que tento esconder. Mas pela qual me apaixonei como nunca antes. Sou cruel para quem não devo e já só consigo pensar em mim mesmo. As conjugações verbais deixaram de fazer sentido nas outras pessoas. E, por isso, criei uma pessoa só para ela, que vem logo a seguir ao “eu”, e reduzi as conjugações a 3 pessoas, duas na primeira pessoa do singular e outra na primeira do plural: “eu amo” / “sombra amo” / “nós amamos”. (No caso específico do verbo “amar” – dei-me agora conta – só há sentido se a forma verbal for reflexiva. “Eu amo-me / Sombra amo-me / nós amamo-nos”. Assim é que é!).
Não consigo deixar de pensar nela. De como me é sem se dar conta. De como somo iguais. E vivo da possibilidade de um dia podermos ficar juntos. Já não tenho 13 anos! Já não deveria sofrer como sofri outrora por M. Passados 10 anos, volto a sentir a alucinante angústia. Como quando dormia com um elástico de cabelo de M. debaixo da almofada e encenava, no meu quarto, deitado na cama, que ela estava a meu lado, apenas a um leve toque de distância. O problema é que, na altura, tudo isso me confortava. Hoje, porém, só me traz dor. Quero ter a sombra sempre comigo, cada segundo da minha existência actual. Quero fechar os olhos e imaginar (ou, porque não?, ter a certeza!) que também ela pensa em mim, ou, pelo menos, vai pensar, vai saber que estou presente também na vida dela.
Já alguém registou a patente do casamento com sombras?
Volto a parar para pensar. Deixar de sentir como sempre fiz ao longo da minha vida. Confesso, estou perdido e o meu rumo não me é totalmente certo. Preciso da bússola de Lilith, que, embora pequena e com setas incertas, me será, certamente, útil. De novo grito e apago o cigarro. Há muitas fotografias para tirar. Há um estúdio a construir e um laboratório a nascer, onde me quero fechar, rodeado apenas do mundo que eu quero construir… E se os focos fracos de luz vermelha permitirem a entrada de sombras, melhor um pouco!
(R)
à velocidade da luz… Acordei com a Xayide nos meus braços. Contemplava-a agora com a pouca luz que me chegava dos candeeiros da estrada da rua Q. Tinha os longos cabelos pretos espalhados pela almofada branca. Alguns escorregavam-lhe pela cara e tornavam-na, assim, ainda mais misteriosa. Lembrei-me, nesse momento, que percorríamos juntos uma das muitas ladeiras estreitas da cidade quando me confessou que não suportava ser vista pela manhã, ao acordar. Acho que me lembro perfeitamente dessa tarde. Éramos ainda desconhecidos e, no entanto, Xayide transparecia já tudo o que era e que viria a ser. As velhas casas da parte velha da cidade fugiam ao longo das ruelas estreitas e nós deixávamo-nos ir… assim… em cumplicidade. Creio que foram esses os nossos primeiros verdadeiros momentos, os instantes decisivos em que nos demos a conhecer e nos deixámos abrigar um pelo outro.
Aproveitei, por isso, essa noite para a admirar em silêncio. Sem que me julgasse ou se sentisse julgada.
O relógio digital marcava 04:07 e a luz vermelha dos números alastrava-se, ténue, por toda a divisão. Tinha pouco mais do que uma hora para aproveitar. Voltei a pensar que ter o dom de controlar o tempo seria a maior das dádivas. Poder parar, rebobinar e avançar quando e como me apetecesse. Lembro-me de quando era pequeno (quando ainda morávamos na casa velha da rua B) costumava jogar com T ao jogo do “e se pudesses desejar?”. Ele, porque era mais velho, acabava sempre por me ganhar e desejar algo como “desejava ter mais desejos”. E a mim nunca me ocorreu desejar “o tempo”… Não deve haver desejo mais forte do que este, o de controlar essa dimensão cósmica. Ouvi da boca de A algumas vezes palavras acerca da noção de tempo. Por essa altura ainda não o entendia muito bem, confesso. Limitava-me a dar-lhe a mão e a fechar os olhos. Adorava a sensação de ser guiado, de não saber por onde ia e simplesmente confiar. Agarrava-lhe num ou dois dedos (enormes) e sabia que, por mais que nos cruzássemos com uma infinidade de pessoas, eu nunca esbarraria com nenhuma… Ainda hoje o faço, sozinho, enquanto atravesso a ponte sobre o rio M.
Xayide: naquele momento desejei-te apenas mais um minuto. E desejei não perder mais tempo com estes pensamentos infantis que tenho sempre…
Levantei-me sem a tocar e acendi um cigarro à janela. Lá fora, a cidade, ou o que restava dela, espreguiçava-se e eu pedi-lhe que se demorasse um pouco mais. À minha volta, naquele pequeno quarto de tons claros, tudo, ou quase tudo, a descrevia na perfeição: as roupas exuberantes espalhadas pelo chão e minuciosamente dobradas na cadeira ao canto; os quadros a tinta-da-china que ela mesma pintara um dia ao meu lado; os dossiers organizados e dispostos por ordem alfabética e ordem cromática crescente; a lista de afazeres para os dias seguintes; odores vários em garrafas de perfume para garantir que, também por fora, cheirava bem.
Sorri e soltei uma nuvem de fumo na sua direcção, talvez na esperança que se cruzasse com um dos seus sonhos, que pairavam algures por ali. Xayide sempre foi o outro lado do meu sorriso, a certeza de uma gargalhada cúmplice. Sempre foi incerta com os outros, mas nunca comigo. Sempre foi versátil lá fora, mas única para mim. Uma líder para todos e o mais frágil dos seres, aos meus olhos. Também a ela eu devia o que me tornei. Também ela sabia quase tanto acerca de mim como eu mesmo.
Ocorreu-me o medo de a ter apenas por representarmos um para o outro o lado mais alegre dos nossos quotidianos, que tentávamos omitir a todo o custo. Que ela apenas me quereria ali para a lembrar que também se pode ser como se é, com defeitos conscientes que decidimos não mostrar quando escolhemos que roupa vestir antes de sair de casa pela manhã… Mas afinal, também eu era assim. Ambos éramos mais sinceros entre paredes. Ou entre as luzes eufóricas de uma discoteca, que cegam e criam um espaço só nosso, como se todo o mundo em movimento à nossa volta mais não fosse do que um colorido papel de parede, que voa ao som do vento. Aí está! O nosso perfeito álibi! Nicht Wahr?
Peguei na Nikon 500, regulei a velocidade (porque aqui posso!) e fechei o diafragma um pouco mais, para que entrasse apenas a luz que dela saía, e deixei que o dedo indicador da mão direita por fim a pintasse à minha maneira. Decidi que nunca lhe mostraria aquela fotografia. Preferi que nunca soubesse como a vejo, do lado de cá…